Um dia, logo no final daqueles tempos em que Corona era só uma marca de cerveja, eu comprei no impulso uma passagem para o Atacama e uma mochila de 40 litros que eu pretendia que fosse minha única bagagem por alguns meses. Meu plano era subir desse deserto até outro, o de Mojave, nos EUA, fazendo o caminho inverso ao que eu havia feito dois anos antes, quando desci as Américas.
Não demorou para que eu caísse na real: 40 litros é muito pouco pra tudo que eu queria levar e viajar seria uma atividade fora de cogitação por um tempo.
Mas por quanto tempo?
Para além de toda a catástrofe humanitária que a pandemia representou, ela também trouxe outros lutos muito mais sutis para todos nós. Aquele tipo de sofrimento que a gente tem até vergonha de compartilhar, porque parece muito pequeno e mesquinho perto da grandiosidade de seu custo real: quatro milhões e meio de vidas ao redor do mundo.
De dentro da minha bolha de privilégios, amarguei meu pequeno luto mês a mês em uma casa no meio do mato, protegida por uma estrada de terra que forçava o isolamento e me presenteava com ar puro. Acuada entre a ponta das facas de meus conflitos íntimos que iam de “eu estou bem, todos os que amo estão bem, logo não posso me queixar ” a “por favor, eu só quero minha vida de volta”, eu desenvolvi algo que se parecia bastante com a descrição de um transtorno de ansiedade associado à depressão.
É que meus pequenos lutos pessoais iam muito além daquela viagem cancelada. Eu havia perdido, de um golpe só, a liberdade de movimento em que eu baseava meu estilo de vida e também minha fonte primária de renda, aquela que havia sustentado minhas necessidades e luxos nos últimos sete anos. Poucas pessoas sofreram golpes econômicos tão profundos nessa pandemia quanto os que trabalhavam com o mercado de turismo e eu me incluía nessa classe de desafortunados.
Todos os dias, ao acordar, eu me fazia a mesma pergunta como uma criança ansiosa sentada no banco de trás: falta muito pra voltar ao normal?
Durante um tempo, me auto-iludi ao pensar que sim. Era para ser 15 dias, mas passaram-se dois, três, cinco meses e o normal não dava o menor sinal de que iria retornar. Até que, com a mesma impaciência de um adulto incomodado com uma insistência infantil, eu mesma me respondi: não vamos voltar ao normal. O vírus não vai desaparecer de repente e fará parte de nossas vidas por anos, talvez décadas. Agora fica quietinha e toma seu suco.
Foi então que, conformada, eu peguei minhas coisas e voltei para BH para encarar essa nova forma de estar no mundo de uma maneira que me fizesse menos mal, ainda que com as implicações todas que ninguém gosta mas que são maiores e mais importantes que a gente. Fiz umas pesquisas, me reorganizei e encarei a estrada novamente, dessa vez para uma longa temporada em Itacaré, na Bahia, onde passei os dez meses seguintes tentando construir uma rotina pandêmica mais leve, uma na qual coubesse banhos refrescantes de mar e manhãs quentes me bronzeando areia. Um movimento que, a contar pelo número crescente de pessoas que fizeram daquela praia seu home-office nos meses seguintes à minha chegada, deve ter virado tendência em muito litoral por aí.
A expansão da vacinação no Brasil e no mundo - incluindo até mesmo essa nem-tão-jovem-adulta sem comorbidades - permitiu sonhar com a retomada de voos mais altos e, depois de certa hesitação e um frio na barriga que há muito uma viagem não me despertava, eu segurei a respiração e um teste negativo de Covid e pisei numa sala de embarque internacional pela primeira vez em anos.
36 horas depois, desembarquei na Sérvia.